lunes, 22 de febrero de 2010

De novo, mas não do zero

Não há como prever quando o Haiti poderá se
recuperar dos efeitos do terremoto.
Mas a coordenação previamente impulsionada pela
força de paz da ONU poderá facilitar o caminho

Carlos Saldibia, de Porto Príncipe

Fotos: 1 Carlos Saldibia

A té a tarde de 12 de janeiro, o Haiti vivia em normalidade
relativa, comum ao país. Era um estado
comparável a Palestina ou Bagdá. A Polícia Nacional
haitiana encontrava-se espalhada por quase todas as esquinas
da capital Porto Príncipe com escopetas automáticas de
grosso calibre e metralhadoras M-16. Efetivos militares da
Minustah (sigla em francês para Missão das Nações Unidas
já que não há pavimento além das avenidas principais. O segmento
da areia branca para construção estava em seu auge.
Isso explica por que as construções novas eram irregulares e
altamente instáveis. Fato que foi alertado, em 28 de dezembro,
por Andrea Loi, braço direito do chefe da missão da ONU
no país, Hédi Annabi, ambos mortos no terremoto, já que
três pequenos tremores de terra sentidos antes do Ano Novo
tinham causado nervosismo no quartel-general da ONU. Dos
três hotéis antes considerados seguros em Porto Príncipe,
Montana, HMG e Le Plaza, apenas o último se manteve em
pé, por um motivo lógico: foi construído por engenheiros
norte-americanos sobre rocha e com blocos de pedra, o que
garantiu que a moradia de diplomatas e militares resistisse,
mesmo contígua ao Palácio do Governo e à Catedral, que sucumbiram
com o abalo.
Em Cité Soleil, entretanto, fazer uma visita a pé só era
permitido com colete antibalas e capacete. “É como uma
favela brasileira”, compara o soldado. Um adolescente se
aproxima e lhe pede dinheiro, desafiador, misturando creole,
algo de português e inglês, ao que o soldado responde: “estamos
aqui só para lhe dar segurança”. E ninguém discorda.
Há cinco anos, quando a quantidade de mortos por roubo era
impossível de determinar e quatro cartéis do narcotráfico
para Estabilização do Haiti) patrulhavam a região, munidos
de coletes antibala, com grupo sanguíneo escrito à vista de
todos, capacetes e fuzis. Nos setores de afluência de pessoas,
guardas privados da empresa Blackwater observavam cada
movimento estranho.
Depois do terremoto, porém, cerca de 70% da cidade foi ao
solo. A estimativa de mortos, no fim de janeiro, já apontava
um número próximo de 200 mil. Somente construções de
rocha do começo do século permaneceram em pé, e uma pequena
comunidade que vivia no luxo desapareceu do bairro
nobre de Petion Ville. Afinal, o debacle humanitário do país,
agora, está ainda mais longe de ser resolvido.
“É desalentador”, diz, inconformado, um soldado do
Exército brasileiro que não quis se identificar. Há dois anos, é
um dos responsáveis por fazer a guarda em Cité Soleil, região
mais pobre e violenta do Haiti. Ele pensava que sua retina já
estava vacinada contra cenas de desgraça, pelo convívio diário
com tantas imagens de miséria. Mas se enganou. Diante
dos efeitos do terremoto, os cerca de 7 mil soldados dos 18 países,
que formam a missão, comandada desde seu início pelo
Brasil, tiveram de direcionar-se ao resgate de vítimas. Para o
brasileiro, naquele momento, os cinco anos da Minustah e os
US$ 577 milhões gastos por seu país na missão pareciam ter
ruído com a cidade.
DIFÍCIL AN TES , PIOR DEPOIS
Visitando alguns pontos da capital haitiana com o soldado,
antes do terremoto, podia-se notar que, durante o dia, era
possível caminhar normalmente, mas, à noite, o panorama
mudava. Os brancos obedeciam a instruções de não circular,
e os homens da Missão de Paz respeitavam o toque de
recolher às 23h30, monitorados pela política militar noturna
da Jordânia e do Brasil. No Haiti, o sol se põe às 17h30 e cada
chuva costumava deixar inundações em quase todas as ruas,

Se não fosse o terremoto
O bom desempenho do setor agrícola, entre
outros setores, como o da indústria maquiladora,
fez a economia do Haiti expandir-se em 2009. Estimativa
divulgada pela Comissão Econômica para
a América Latina e o Caribe (Cepal) em dezembro
indicava um crescimento de 2% no ano passado.
Não fosse pelo terremoto, a projeção era de que
esse número se repetiria em 2010. Os principais
fatores que impulsionaram tal crescimento seriam
uma política mais expansiva para estimular
a economia e o cenário eleitoral, com eleições
legislativas no começo do ano e presidenciais
no final.
O informe ainda indicava que a taxa média de
inflação anual tinha baixado de 14,4% em 2008
para 3,4% em 2009 – por causa da redução dos
preços internacionais de alimentos e do petróleo.
O déficit em conta corrente caiu de 4,6% para 1%
no mesmo período, e o investimento estrangeiro
direto (IED) tinha aumentado 24% em relação a
2008, ainda que fosse um montante tímido: US$
37 milhões. O ex-presidente dos EUA, Bill Clinton,
nomeado, em abril de 2009, enviado especial
da ONU ao Haiti, buscou impulsionar a atração
de IED ao país, promovendo, em outubro, uma
visita ao Haiti de cem empresários de 14 países.
Entretanto, a destituição, nesse mesmo mês, da
primeira-ministra Michele Pierre-Louis, por acusação
de malversação de fundos para atender a
vítimas dos furacões de 2008, foi considerada um
passo atrás nesse esforço.
Hoje, ainda não se pode mensurar os desafios
para a recuperação econômica do país. Em
2008, quando foi vítima de furacões, o Haiti registrou
perdas de US$ 900 milhões, relativas a
15% do PIB, segundo o FMI. Mas isso, frente aos
desastres provocados pelo terremoto, parece
ser café pequeno.
repartiram a capital em setores, tudo era indiscutivelmente
pior. Os sequestros foram reduzidos de 327 mensais, em 2004,
para cerca de 20 ao ano.
“Realmente, a missão liderada pelo Brasil, nesses mais
de cinco anos, conseguiu cumprir questões mais relevantes,
que são a provisão de estabilidade e de condições mínimas
de segurança pública”, diz Antonio Jorge Ramalho, professor
de Relações Internacionais da Universide de Brasília (UnB).
Ramalho, que morou em Porto Príncipe entre 2007 e 2008,
acha que o Exército do Brasil, nesse sentido, “conseguiu medir
o uso da força sem reagir com violência, usando-a dentro das
regras de engajamento estabelecidas”, o que se constituiu em
um diferencial em relação a militares de outros países. “Era a
primeira vez que haitianos viam soldados construírem algo,
distribuir alimentos, brincar com crianças.”
TEM PO E OR DEM
Agora, quem olha para Porto Príncipe, seja pela TV, seja a olho
nu, não deixa de refletir sobre o retrocesso que o movimento
de recuperação implicará ao de estabilização. “Embora o terremoto
tenha destruído muita coisa, não se vai sair do zero,
pois a Minustah promoveu uma coordenação maior, mais
troca de informações, e permitiu ao governo haitiano fazer
um projeto. Agora, será preciso revisitá-lo”, diz Ramalho.
Para um assessor europeu de Annabi, o maior desafio será
a velocidade da recuperação. “Não há dúvida de que tivemos
avanços no processo de estabilização, mas, em cinco anos,
não tínhamos chegado nem à metade do necessário”, diz.
Com o terremoto ainda fresco, e apesar da comoção e dos
acenos de ajuda de todo o globo, os organizadores não tinham
tempo de fazer estimativas, nem de ser otimistas: apenas de
reagir. Uma semana depois da tragédia, com tropas de reforço
desembarcando no país, a ONU ainda não sabia como organizar
um sistema de ajuda que garantisse ao menos que água
e alimentos chegassem aos mais necessitados. “E vamos ver
se essa comoção internacional poderá se converter em uma
colaboração efetiva”, questiona um alto oficial chileno da
missão. “Antes do terremoto, o país já era a maior reunião de
ONGs de direitos humanos e ajuda humanitária que conheci,
com mais de 400 delas”, afirma, questionando o valor de uma
ação tão fragmentada, sobretudo ao atrair intituições que,
segundo ele, sequer possuíam registro oficial. “Em contrapartida,
há um cemitério de projetos de engenharia, em que
os planos do Programa das Nações Unidas para o Desenvol-
DEBATES HAITI
a ânsia da busca entre os escombros:
vítimas podem chegar a 200 mil
vimento (PNUD) são uma gota no deserto”, diz, apontando a
falta de foco em planos de infraestrutura no país, que pode
ter colaborado para a intensidade dos efeitos do terremoto.
Ramalho, da UnB, entretanto, defende que será um grande
equívoco deixar o calor das emoções contaminar o debate
e culpar a ONU e outras instituições pelos déficits de infraestrutura
no Haiti. “O fato de o Estado ser tão frágil dificulta
que ele cumpra suas responsabilidades, e muita gente olha
para a ONU como se ela tivesse que fazer o que o haitiano
não faz”, afirma. Para o brasileiro, entretanto, “a única falha
da missão até agora foi deixar-se usar pelo governo haitiano,
que se exime de suas responsabilidades, alegando que o país
está ocupado. Há décadas, as elites do país usam a presença
internacional como escudo”, diz. E, se essa distorção existe,
será mais complexo corrigi-la agora, quando a ajuda internacional
se faz ainda mais necessária

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